Último Capítulo: Voltaste
Era um daqueles dias em que, quando acordamos, nos lembramos de todas as inconveniências que há na nossa vida. Assim que abri os olhos, naquela manhã, voltei a fechá-los imediatamente. Era um dia para o qual não estava preparado. Voltarias para junto da tua mãe, que tinha recuperado bem do acidente de viação e recebido alta hospitalar, e era também a Véspera de Natal, dia que eu detestava há muitos anos. Por isso, além de estar zangado com a tua partida, aborrecia-me igualmente a falta de neurónios que se ocupassem com a fúria natalícia.
̶ Fausto, eu vou levá-la. Vens também? − perguntou a tua avó, depois de se levantar.
̶ Não.
Foi uma resposta precipitada, daquelas que, mesmo sem ter passado pela hesitação, depois nos faz pensar muito.
Passado um tempo, levantei-me. E apercebi-me de que já não estavas lá. E de como enchias a casa, agora vazia e estranha. Depois de tomar o pequeno-almoço, a fechadura da porta rodou. E eu considerei, num rápido e curto instante, que pudesses ser tu, a voltar. E seguiu-se outromomento em que o meu cérebro questionou a razão dessa possibilidade tão tola, a qual foi imediatamente desculpada: se voltasses, era provada, em definitivo, a irresponsabilidade da tua mãe. Seria eu o dono da razão, por ela não ter conseguido ficar contigo.
Mas não voltaste. Era só a tua avó, claro. Havia mil perguntas que lhe queria fazer: como estava a tua mãe, como e onde estavas tu, se alguma vez voltarias... Fiquei calado e passei o dia sem saber nada, mas sempre a magicar o que te podia estar a acontecer naqueles momentos. Tantas vezes pensei em ti, nesse dia, que o meu cérebro ficou exausto de procurar razões sem fundamento para desculpar o facto de gostar de ti. Já não era mais capaz.
Foi a Véspera de Natal que mais me torturou, sem dúvida alguma. Durante todo o dia tentei ocupar a cabeça, mas ela já estava tão cheia de saudades tuas que nada a conseguia entreter. Mas, a certa altura, o telefone tocou, e a tua avó correu até mim.
− É a Mar..., a Catarina. Ela precisa de falar contigo.
− Não falo com a Margarida.
Foi, novamente, uma resposta precipitada, mas que me fez pensar. Impaciente, a tua avó colocou depressa o telefone no meu ouvido.
− Avô!
Era a tua voz, que me deixou com uma estranha sensação de ardor no nariz, aquela que temos quando estamos prestes a chorar.
– Eu não quero fazer os trabalhos de férias. É Natal! A mãe está a mandar-me fazer porque eu não os fiz na tua casa!
Eu não disse nada por uns segundos, porque sabia que, se falasse, a voz ia sair embargada.
− Tens de os fazer, Catarina. É importante.
− Importante para quê? Para a professora não ralhar comigo? Ela nunca ralha, avô. Então, não faz mal!
− Faz, sim. Sabes porquê? Porque os trabalhos de casa não servem para a professora não ralhar contigo, mas sim para aprenderes. E na escola aprendem-se coisas das quais vais precisar para toda a vida! Algumas nem são aprendidas nas aulas, mas a escola forma quem tu és. Um dia, vais tornar-te numa mulher sábia, bem-sucedida, pelas coisas que aprendeste na escola. Todas as grandes pessoas gostam de aprender, Catarina. E sei que tu és uma grande pessoa e que vais aprender muito.
− Não vou, avô! A escola não tem nada a ver comigo! É muito difícil...
− Eu sei. Também já andei na escola e nem sempre gostava das coisas que lá ensinavam. Sei que, às vezes, pode parecer que não somos capazes, porque as matérias são complicadas e temos de nos esforçar muito. Mas também sei, com toda a certeza, que tu consegues. Está bem? Nunca duvides disso e acredita sempre em ti. Tenta. Prometo que vais aprender coisas que gostas mais, depois.
− Vou tentar − respondeste, com voz de quem estava a sorrir.
Desliguei rápido o telefone. Não havia dia em que não me deixasses a refletir. E, mesmo naquela Véspera de Natal, conseguiste entreter-me. Passei o resto da tarde a trabalhar numa crónica sobre os meus tempos de escola, que me trouxe imensas memórias felizes. Naquela tarde, fui capaz de me abstrair.
− Fausto,− chama a tua avó, numa voz clara e paciente − vem ao menos jantar. Eu sei que não é um jantar de Natal, mas quis fazer, no mínimo, comida adequada à ocasião. Bacalhau.
Eu olhei para ela e para a refeição de aspeto maravilhoso: caldo verde, bacalhau com salada de tomate, batatas, brócolos e azeite reluzente. Até havia mousse de chocolate para a sobremesa.
− Eu fiz tudo de boa vontade! Se não comes tu, como eu! Nada te satisfaz, homem! Parece que...
− Quem te disse que não comia?
Ambos sorrimos, mas o jantar foi um tanto triste. Nenhum de nós se abriu, mas também não escondemos o quanto sentíamos a tua falta. Depois, sentámo-nos no sofá a tentar prestar atenção à novela. O relógio marcava as onze horas quando saímos do sofá para nos irmos deitar. Mas, antes de chegarmos ao quarto, a campainha tocou. E a própria campainha parecia saber que rasgava o silêncio, parecia tocar de forma mais alta e impactante. Eu e a tua avó encarámo- nos, mas foi num rápido segundo, porque ela logo correu a abrir a porta.
Quando esta se abriu, os meus olhos não conseguiam processar o que viam. Com tamanha informação para decompor, a primeira coisa que consegui assimilar foi a chuva torrencial, na qual eu e a tua avó nem tínhamos reparado antes.
− Mãe, desculpa. Desculpem. Mas a Catarina vai ter de ficar aqui esta noite. Ele... ele...
A tua mãe parecia não conseguir concluir. A chuva torrencial não se comparava ao rio de lágrimas que lhe escorria pela cara.
− Ele o quê, filha? Conta-nos tudo com calma – falava tranquilamente a tua avó. − Os médicos, mãe... Os médicos... Eles dizem...
− Fala, filha. Disseram o quê?
− Que ele vai... Vai morrer, mãe!
Eu ouvia tudo o que era dito, mas nada me entrava na cabeça. Nem tinha tido tempo para processar quem seria o “ele”, mas, quando me dei conta, nem assim consegui assimilar. Procurei, contudo, instalar a calma.
− Ela fica cá, filha. Nós conseguimos, não te preocupes. Vai descansada.
A tua mãe correu para os meus braços como já não fazia há muito, e tu decidiste fazer o mesmo.
− Ficas connosco esta noite, Catarina. Não te preocupes que amanhã a mamã volta.
− Mas, avô, o pai volta amanhã também?
O maior erro que se podia cometer contigo era achar que tu não compreendias uma situação. Sabias sempre o que se passava.
− Não sei, mas vamos ver. Lembra-te do que disse ao telefone: tu és uma grande pessoa e vais conseguir aprender. Às vezes, a escola é tão importante que passa a ser a nossa vida, e a nossa vida ensina-nos tanto que passa a ser a nossa escola.
Propus à tua mãe que se fosse embora e voltasse no dia seguinte, facto com o qual a tua avó concordou, assentindo com a cabeça, já bastante emocionada.
E assim foi. Na manhã seguinte, eu e a avó despertámos cedo, às seis, ambos preocupados. A tua mãe não dava notícias, desde a noite anterior, e não soubemos nada dela até às oito, quando a campainha voltou a tocar. Eu, a avó e tu corremos para a porta. Novamente, estava a tua mãe lavada em lágrimas e com a voz muito embargada.
− Mãe, pai... Quero apresentar-vos o Luís, o pai da Catarina.
Aí aconteceu um dos momentos que me fez sentir uma realização suprema da vida. Correste para os braços do teu pai, ele abraçou-te também. Beijaste-o, ele beijou-te também. Disseste que tinhas sentido a sua falta, ele disse que tinha sentido a tua falta também. E tu, cheia daquele amor, nunca tiveste tempo para ver que ele já não tinha uma perna. E ninguém prestaria atenção a nada mais, porque mostrarmos que amamos é sempre mais importante.
− Olá, Luís. Sou o Fausto, o pai da Margarida. Queria agradecer. Por tudo. Tens uma filha maravilhosa e uma companheira à qual devias mostrar gigante gratidão todos os dias. Não as percas. É sem dúvida o erro de que mais me arrependo. Espero não te perder a ti, porque acredito que nos daremos bem.
A tua avó partiu de imediato para um abraço coletivo. Esse abraço foi a coisa da qual mais falta senti neste mês, Catarina. Depois de tanto tempo sem te ver, vou finalmente poder abraçar-te de novo. E esse é o motivo pelo qual eu me sinto mais grato nesta vida. Por este teste negativo, que chegou depois de quatro penosas semanas isolado do mundo. E, quando fores mais velha e poderes ler isto, espero que sintas que consegui dizer que te amo todos os dias.